“Mas, pai, já não estamos em ditadura”, disse-me a minha filha, hoje ao jantar, quando lhe contei que trabalhadores em protesto tinham sido dispensados pela Casa da Música na sequência da vigília silenciosa que ontem fizemos.
Por Marcos Cruz
C oibi-me de lhe responder “não, filha, já estamos em ditadura”, porque não a quero assustar e porque eu próprio ainda me recuso a acreditar nisso. A verdade, no entanto, é que a Casa da Música está a ser antidemocrática.
Vou contar a história desde o início, eu que tinha prometido a mim mesmo não me expor mais. Ao longo dos 10 anos de trabalho que já levo ali, a autoridade nunca deixou de se fazer sentir. Como na série “Downton Abbey”, sempre houve a cota de cima e a cota de baixo, a primeira representada por administradores e directores, a segunda relegada para a restante massa laboral.
Eis senão quando, parte desta última decide revoltar-se. Em plenários, no âmbito da Comissão de Trabalhadores, são aprovadas por unanimidade propostas relativas a falsos recibos verdes, ausência de categorias profissionais definidas e vencimentos de referência, inexistência de comunicação entre a administração e a equipa.
Nunca é demais referir que, desde a tomada de posse, não houve uma única reunião que apresentasse um elemento sequer do CA aos trabalhadores. Eu, por exemplo, não sei quem eles são. E esse era um propósito: administrar a Casa independentemente de quem a faz. Ficou claro para todos os que votaram connosco.
Acontece que depois veio a Covid e as pessoas foram remetidas a suas casas. Daí, do isolamento, as respostas deixaram de ser as mesmas. Houve gente que abandonou o barco, ou porque teve medo, ou porque estrategicamente achou que beneficiava com isso. Duvido de que tenha havido quem o fez porque mudou de opinião.
Entretanto, o movimento de trabalhadores indignados fez o seu caminho, propulsionado pelas injustiças a que foram sujeitos tantos “prestadores de serviços”, alguns dos quais legalmente já não o seriam se houvesse razões para acreditar nas instituições deste País. Mas não há muitas, e é com profunda tristeza que o digo. Dois dos meus colegas que fizeram denúncias à Autoridade para as Condições do Trabalho, casos clássicos de falso recibo verde, vieram de lá chocados, porque quem os atendeu estava preocupado com a Casa da Música: “Já viu, você e o seu colega estão lá desde o início, por isso a Casa teria de pagar mais de 8 mil euros a cada um pela segurança social…”.
Pergunto: e eles que os pagaram do seu bolso, indevidamente, não interessam? Que raio de poderes são estes que se unem, escondendo os podres uns dos outros? E a ministra da Cultura ainda vem ao Parlamento dizer que está à espera das conclusões da ACT para se pronunciar sobre a Casa da Música?
Isto é uma absoluta vergonha. Deixemos de nos enganar. A Casa da Música nasceu sob o lema de “Casa de todas as músicas”. A sua missão era servir a música, contribuir para o equilíbrio do meio cultural, ser um vaso comunicante nessa área. E, afinal, quem a gere não comunica sequer com quem a faz.
Ainda ontem houve um exemplo disso, quando oito assistentes de sala foram dispensados do trabalho de Junho pelo seu coordenador e, querendo saber porquê, não tiveram direito a resposta. Claro que foram postos fora porque estiveram na vigília. Vieram depois a confirmá-lo. E isto é desrespeito por direitos fundamentais, nomeadamente a liberdade de opinião e de expressão.
A mim, não me admira. Vem na sequência de reuniões intimidatórias entre subscritores do abaixo-assinado que tornou tudo isto público e os respectivos coordenadores, que não se envergonharam de lembrar aos subordinados que tinham família e deviam pensar bem nas suas atitudes. Se alguns deles tivessem lido a Hannah Arendt talvez se apercebessem de que o mal não está numa mente distorcida, o mal está na corrente de transmissão dessa mente, unida sob a desculpa de que as ordens são para cumprir.
Mas em que condição nos vemos nós? Somos gado, por acaso? Que respeito temos por nós mesmos?
O abaixo-assinado manteve-se, apesar das desistências de quem não resistiu à pressão, e fez o seu caminho. De então para cá, temo-nos conhecido a todos, os que estamos na arena, e posso afirmar que nos sentimos amigos, pares, gente de fibra, pessoas com quem se pode contar porque cultivam valores inegociáveis. Este processo já é uma vitória, independentemente dos resultados práticos da luta.
Nada há de mais gratificante, para mim, do que fazer amigos, na justa medida em que o sentido da existência é, do meu ponto de vista, a coexistência. Outros terão, com todo o direito, uma opinião diferente. Mas era bom que a expressassem. Convém lembrar que até aqui só o movimento de trabalhadores se dispôs a tornar públicos os seus argumentos, do lado da administração e da direcção continua a imperar o silêncio. E eu tenho dificuldade em entendê-lo a não ser como defesa, porque quando uma pessoa ou um órgão acredita nas suas razões não sente medo nenhum de as apresentar ou discutir. Ainda para mais, caso haja quem não tenha reparado, isto é uma luta de David contra Golias.
Além do poder institucional que a protege, a Casa da Música tem o Ministério da Cultura, a ACT e a própria comunicação social do seu lado. Custa-me dizer isto, eu que fui jornalista, mas decidi abrir o jogo e não me perdoaria, por medo, ficar a meio. A semana passada fui contactado por uma jornalista de um diário de referência que queria fazer uma reportagem sobre este assunto. Falei com ela, dei-lhe os contactos dos meus colegas a recibo verde e fiquei à espera. Passados uns dias, ela informa-me de que a reportagem não vai sair porque é uma matéria “sensível” e exige o contraditório, que a administração não quer dar.
Ora, tendo eu estado do lado de lá, contactei um amigo da direcção desse jornal e disse-lhe que não compreendia a decisão, uma vez que a jornalista tinha feito o seu trabalho, não lhe cabendo culpa de a administração não querer falar. Ele prometeu responder-me no dia seguinte, mas até hoje… nada. E ontem passou-se mais do mesmo: uma vigília silenciosa que foi “o” tema da reabertura da Casa da Música e a comunicação social encaminha-a para a subcave das notícias.
É por estas e por outras que precisamos da vossa ajuda, da ajuda de todos os que, como a minha filha, não querem viver em ditadura.
E aqui aproveito para exortar os meus colegas que se desvincularam destes protestos a fazerem um exame simples de consciência: pensem que estão na pele destes “recibos verdes”, verdadeiros e falsos, que foram descartados pela Casa, e tentem sentir a importância de terem à vossa volta gente sob contrato que se une a vocês, por vocês, pela justiça.
Da mesma forma que nos EUA se grita “white silence is violence”, eu devo lembrar-vos que assumir uma posição de neutralidade na cara duma injustiça é estar do lado do opressor.
Por favor, apoiem-nos. Juntem-se a nós. De dentro e de fora. A luta não é pela Casa da Música, a luta não é por Serralves, onde acontece a mesma vergonha – a luta é por valores humanos, sociais e culturais. Foi isso que nos juntou a Serralves e é isso que nos irá juntar a vocês. A todos os que querem viver em liberdade, dignidade e democracia.
A gente não vai parar.»
Notas. O título do texto é da responsabilidade do Folha 8. O texto está publicado no Facebook do autor. O Folha 8 nunca estará do lado dos opressores. A Fundação Casa da Música é uma instituição de direito privado e utilidade pública instituída pelo Estado Português, Município do Porto (Portugal), a quem se juntaram os Fundadores Privados. É regida pelos estatutos definidos no Decreto-Lei nº18/2006 de 26 de Janeiro. O modelo fundacional foi considerado o mais adequado para potenciar os princípios da autonomia, flexibilidade, estabilidade e profissionalismo.
Foto: José Soeiro